Uma Viagem sentimental

José Gomes Quadrado
No dia 2 de Outubro, (2006*) teve lugar um inolvidável passeio fluvial entre as barragens hidroeléctricas do Pocinho e da Valeira, um evento organizado pela Junta de Freguesia das Mós e realizado, ainda, no âmbito do “Dia Internacional do Idoso”, com a prestimosa colaboração de entidades municipais, que para o efeito cederam não só o bem conhecido autocarro mas também o “Senhora da Veiga”, uma réplica (moderna e muito cómoda) do histórico e típico barco rabelo e que navega nas águas do Douro desde o dia 2 de Julho. Todos sentimos uma enorme satisfação por mais esta “porta aberta” para a entrada de turista no nosso Concelho, deixando ele ser aquele que se limitava a ver os barcos turísticos a passarem ao largo: rio acima...rio abaixo...
Portanto, foi com redobrado consolo que embarcámos no porto fluvial do Pocinho, para logo seguirmos para a eclusa da barragem e assistimos ao “jogo das comportas”, comandado à distância.
Concluída a subida do nível das águas e após um breve olhar para a desactivada ponte metálica rodo e ferroviária, fui juntar-me aos numerosos amigos reunidos na proa do barco: um tempo para conversar, para recordar tempos passados e matar saudades de alguns que não via há décadas.
Centenas de metros adiante, o barco passou a ziguezaguear através dos múltiplos meandros provocados pelo colossal morro granítico do Monte Meão. E quando interrompi a conversa com os meus amigos, já o barco chegara à foz do rio Sabor. Então, subi ao “palanque” para junto do Mestre Natalino (de Peniche) e perante aquela serena marcha liquida em que seguíamos, observei o contraste destas águas mansas com as do rio de mau navegar que era o Douro de outrora, e desatei a falar dos perigos e dos trabalhos da faina fluvial de antigamente, devidos às fúrias de um rio violento, cheio de cachões, de pegos, de “secos”, de “carreiros”... alguns dos quais existentes no segmento que banha terras do nosso concelho. Quando desci, já o barco retrocedera para dar a “volta do Monte Meão”, tendo à direita o fraguedo granítico da serra da Lousa. Depois, passamos ao lado da Quinta do Saião. E neste percurso deparamos com uma curiosa ilhota, constituída por um amontoado de enormes calhaus. Aquele sucessivo voltear do promontório, só por si, justificaria o embarque, tão fascinante ele é!
O afloramento granítico termina quando o rio atinge o “ponto” do Salgueiral, dando lugar aos xistos argilosos que o vão flanqueando durante 12 Km, até à foz da ribeira da Teja.
A partir do Salgueiral, o barco passou a seguir o rumo Este - Oeste, e os horizontes alargaram-se consideravelmente. Na margem esquerda sucedem-se os montes. Nalguns predomina o mato, noutros as encostas estão cheias de amendoais, e no vales mais abrigados e à beira rio, avultam oliveiras e vinhas.
O deslumbramento paisagístico continuou: primeiro o ciclópico, depois o bucólico. E o mais fascinante era quando os cenários apareciam reflectidos nas águas límpidas e tranquilas do rio, como se fossem espelhos!
Aos meus ouvidos continuavam a chegar as informações dos amigos José Esteves e Acácio Barandas:
- Além é viaduto do Vale do Nedo e a Quinta das Fontainhas; lá em cima fica a Portela das Campanas...
Depois falei:
-Aquele conheço-o eu bem, é o viaduto de Gonçalo Joanes e junto à “caseta” que está a seguir, havia um carreiro que a gente das Mós percorria para chegar a pequena cachoeira, conhecida por “Azenha do Rio” ou do “Abade”. Ali vinham as mulheres lavar mantas, cobertores, lençóis e alguns “benairos”. Por vezes, armavam pequenas tendas com paus e cobertores, para pernoitarem na cascalheira do Pigarro, que durante o dia servia de coradoiro.
Quando acabei a narrativa, já avistávamos o edifício residencial da Quinta do Torrão e logo a seguir o modernizado ancoradouro do Freixo, onde, durante séculos, era amarrada a “barca de passagem” a um freixo, do qual deriva o topónimo Freixo das Mós. Durante os minutos que avistei este lugar, o meu espírito quedou-se perscrutando na memória o Freixo que outrora conheci. Tal como o rio, também ele está transfigurado. O Freixo da minha infância e juventude foi convertido numa instância de turismo, com a estação transformada em estalagem e as duas casas onde havia outras tantas tabernas foram demolidas para, no mesmo sítio, construírem um extenso e moderno edifício, onde instalaram um apelativo restaurante.
E porque esta pretende ser a reportagem duma viagem sentimental, não podia passar adiante sem deixar aqui a imagem de uma estação (que deixou de ser) onde, vezes sem conta, desembarquei com o coração cheio de saudades, afectos e ansiedade. E a melhor escolha é a foto do quadro que nos legou o pintor mosense Eduardo Barandas Polido. Escolha devidamente autorizada pela mãe, Bárbara Polido, uma das mais alegres excursionistas.
Inalterada continua a centenária Ponte do Torrão, com os seus 206 metros de comprimento, sendo: 113 a extensão metálica e 93 a de cantaria. Nela termina a zona ribeirinha das Mós, que se estende ao longo de 7 ou 8 quilómetros.
Passados alguns minutos, sentámo-nos à mesa. Antes de chegarmos ao Vesúvio e de começar a saborear o delicioso almoço, o Eng.º Correia, presidente da Junta, abeirou-se para me indicar as instalações da mini-hídrica do “Catapereiro”, um pequeno aproveitamento hidroeléctrico das águas da Teja, no qual a “Fozcoainveste” tem uma comparticipação superior a 50%.
Antes, durante e depois de degustarmos a saborosa refeição, viveram-se momentos de inesquecível convívio, cheio de afectos e de diversificadas emoções. Recordando o passado mais ou menos distante, foram lembrados agruras e consolos, que levaram os mais sensíveis a deixar escapar uma ou outra lágrima, nomeadamente, quando foram recordados parentes próximos e amigos que já partiram. Depois, tivemos alegria a rodos com danças e cantares tradicionais.
Voltei a viver mais uns momentos de abstracção para apreciar a nova e diagonal Ponte da Ferradosa, terminada em 1980, quando foi construída a barragem da Valeira, cujas águas afogaram a antiga ponte que, durante quase um século, desviava, também, a linha férrea duma, para a outra margem do rio.
O que foi o terrifico Cachão da Valeira está resumido nas letras de bronze mandadas colocar pela Companhia Geral das Vinhas do Alto Douro, depois de terminadas as importantes obras de desobstrução que ali mandou realizar. A placa, gravada no granito, reza assim:
“Imperando/D. Maria I,/ Se demolio o famoso/Rochedo que, fazendo aqui/Um Cachão inacessível/ impossibilitava a navegação/desde o princípio dos/séculos: Durou a obra de/1780 a 1792.”
Apesar dos benefícios trazidos pela execução das referidas obras, a passagem na estreita “garganta” da Valeira passou a ser muito perigosa. Assim, entre muitos naufrágios ali verificados, ficou célebre o de 12 de Maio de 1861, que roubou a vida não só ao Barão de Forrester mas também a uma famosa cozinheira (Gertrudes de seu nome) e ainda um elemento da tripulação. Todos viajavam na companhia de D. Antónia Adelaide Ferreira, assim como: o seu 2º marido, sua filha, genro e também o raramente referido juiz de Foz Côa, Dr. Aragão Mascarenhas.
Sobranceiro a este impressionante estrangulamento, está o centenário santuário de São Salvador do Mundo.
No regresso reparámos na reconstruida estação de Vargelas e na Quinta do Arnozelo que tendo uma parte incluída na área de S. João da Pesqueira, se estende, depois, pela freguesia de Numão, até à margem esquerda da ribeira da Teja. Na margem direita do Douro, enraizado nas águas do rio, ergue-se de forma eruptiva um monte que, certamente por apresentar algumas parecenças com o conhecido monte italiano, terá servido de inspiração a António Bernardo Ferreira para, quando tomou posse da secular Quinta das Figueiras, a “crismar”, atribuindo-lhe o nome de Quinta do Vesúvio. Aqui pudemos apreciar o célebre palacete mandado edificar por sua sobrinha e nora, D. Antónia (a legendária Ferreirinha da Régua). É um imponente conjunto, constituído por dois chalés em forma de U, de estilo barroco, orientado para montante do rio, tendo no pátio central uma enorme e antiquíssima palmeira. A bordo, avistámos a fachada da capela onde, nos anos 40 do século passado, o padre João Cardoso, residente nas Mós, celebrava missa aos domingos e dias santos.
Dali para a frente, aproveitámos todo o tempo para convivermos mais próximos uns dos outros, dando aso à formação dum improvisado coro que passou a entoar “modas” e “modinhas” que sempre se cantaram nas Mós. E ao regressarmos ao ancoradouro do Pocinho, em jeito de balanço da “viagem sentimental”, pus-me a recitar a seguinte quadra, que retenho na memória há muitos anos:
“Margens do Douro, celebradas
Que são em todo o tempo e em toda a era,
Sempre de esmeralda alcatifadas,
Perpétua estação da Primavera!”
E na despedida, disse para os amigos que estavam mais próximos:
- Conheço o Douro Nacional desde menino, e digo-vos: daqui à Valeira podemos desfrutar as mais deslumbrantes paisagens de todo o Vale do Douro, porque são as mais diversificadas. Esta apreciação inclui, evidentemente, as que se podem observar no Pocinho, talvez o mais promissor polo de desenvolvimento turístico da nossa zona ribeirinha.
Das suas virtualidades me ocuparei, quando me debruçar sobre outras (imensas) potencialidades turísticas do concelho de Foz Côa. Agora, é da mais elementar justiça terminar, afirmando que: antes, durante e no fim da viagem, tudo foi cuidado até ao ínfimo pormenor pelos elementos da Junta de Freguesia, ajudados pela competência e afabilidade de todos os trabalhadores municipais. Bem hajam todos!

*Ano indicado por iniciativa do blog dAs Mós