“É
um rio louco que abriu caminho em fúria
por
entre montes gigantes (...)
É
um rio sinistro de cor e trágico de loucura.
Parece
que leva consigo as lavas de um vulcão,
tão
espessas são as suas águas vistas de longe:
barrentas,
com olhos verdes e laivos amarelos,
gritando
nos pontos, como se quisessem atemorizar
os
homens que ousam devassá-la.” (pgs. 61 e 62)
O Douro que Redol conheceu
era, efectivamente, um louco, e louco logo à nascença pois, saído do ventre da
serra, despenha-se fragorosamente nas escarpadas vertentes e só quando
atravessa o planalto de Castela-a-Velha parece ganhar algum tino.
Mas desaustinado ou não,
sempre correu orgulhoso dos seus areais louros e brunidos, das suas águas, cuja
pureza milenária se ouve, ainda hoje, apregoada, de Urbion até Miranda, com
seculares aforismos:
“Bebe del Duero
Por turbio que vaya!”
“Agua del Duero
Caldo de pollo.”
Dentro em breve, quando a
central nuclear de Sayago funcionar, a pureza das águas e estes aforismos terão
passado definitivamente à História.
Chegado a Paradela, torce
para um rumo NE-SW e torna-se um rio internacional.
Antes da construção da
série de barragens hidroeléctricas que vieram refrear a sua impetuosidade,
corria aforçurado, espumando-se e bramindo furioso contra a penedia que o
estrangulava. Cachoando de “salto” em “salto”, só voltava a amansar pouco antes
de chegar ao acentuado encurvamento da Barca d’Alva. Descrevendo o cotovelo,
muda ostensivamente para Ocidente, penetrando em território português.
A milenária fúria com que
escalavrou o seu sinuoso caminho embateu, impotente, até finais de setecentos,
com “hüa muy alta fraga” (4) que se situava a meio da dantesca garganta, entre
“o penhasco agressivo de S. Salvador do Mundo” e as escarpas também graníticas
de Campelos (na margem direita).
Esta “muy alta fraga”,
represando as águas, fazia-as elevar consideravelmente, obrigando-as a
despenharem-se em estrondosa catadupa, a que se dava o nome de cachão da
Valeira. Este famigerado fragão, que só em finais do século XVIII acabaria por
ser demolido, foi um intransponível obstáculo à navegação longitudinal para
montante, e foi o responsável por um desigual desenvolvimento económico-social
de terras duma mesma região, dando lugar à sua divisão em duas sub-regiões:
Douro Superior, para Leste, até à Barca d’Alva e Alto Douro, propriamente dito,
para Oeste, até Barqueiros (Mesão Frio).
Com efeito, enquanto no
Alto Douro, desde o último quartel do século XVII, se foi progressivamente
incrementando a produção de vinhos, uma agricultura capitalista, no Douro
Superior manter-se-ia, por muito tempo, uma economia mais diversificada, muito
menos dependente da vinha e com um regime de propriedade mais repartida.
Para além destes dois
sectores, existe ainda um terceiro segmento denominado Douro Inferior ou Baixo
Douro, que se estende para jusante de Barqueiros.
Foram estes dois últimos
troços que Redol conheceu, no primeiro lustro dos anos quarenta, quando
estagiando largamente quer no Pinhão quer em Porto Manso, viajou
temerosa e abnegadamente nos rabelos, entre estas duas localidades e o Porto,
tendo o assinalado ensejo de conhecer o Douro selvagem, arrebatado e fremente
que já os antigos denominavam “rio de mau navegar” e que só na segunda metade
da década de 50 começaria decisivamente a ser transformado no rio gordo e
pacífico que hoje é.
“Babado
de espuma nas galeiras, onde a morte espreita e os cachopos aguçados são
punhais a desventrar barcos.” (pg. 61)
“Entre
os mil e um escolhos que o Douro opunha aos seus navegantes, avultavam as
terríficas “galeiras” ou “pontos”, alguns dos quais se caracterizavam por
correntes rápidas entaladas entre recifes. Era aqui que “a água corria
desencontrada, rodopiando em alucinações de espuma e ondulação.” (pg. 62)
Com estas quedas ou
correntes rápidas, contrastavam as águas dormentes e remansosas (mas falsas),
dos “pegos”, “poços” ou “fundões”, próprios dos locais onde a fractura da rocha
fora mais profunda. Encaixados entre lapedos, os “poços” eram geralmente
precedidos de rápidos, e a perigosidade de muitos deles residia nos grandes
sorvedouros e medonhos redemoinhos, capazes de meterem a pique os maiores
rabelos. Dos sete ou oito grandes “pegos” que mais atormentavam os
“marinheiros” rabelos, aquele que Redol conheceu melhor era designado “Poço da
Parede” e estendia-se, ao longo de cinco quilómetros, entre a “galeira” da Rapa
e a celebrada Escarnida ( a jusante).
Por outro lado, as
empinadas vertentes que se debruçam sobre o rio, apresentam-se sulcadas de
ribeiros, ravinas e córregos que, durante as muitas e grandes trovoadas que
acodem ao Douro, precipitam no já tormentoso caudal águas em turbilhão e o
produto da erosão que provocavam nas ladeiras, dando lugar a numerosos “cones
de dejecção”, formando os chamados “baixos ou secos”, as grandes “restingas”
(bancos de areia e de calhaus), recifes imersos, “ínsuas” (ilhotas de areia),
etc., que igualmente dificultavam a navegação.
Segundo alguns estudiosos
(5), eram mais de duzentos os obstáculos que atormentavam a navegação desde o
“Saltinho” (Freixo de Espada-à-Cinta) ao Porto. Muitos deles faziam perigar a
vida dos navegantes, em toda a roda do ano. Isto porque, se uns eram muito
difíceis de transpor, durante a estiagem, outros, por vezes, eram impossíveis
de passar quando as águas iam altas.
Redol, demonstrando
conhecer estes e outros escolhos que afligiam os barqueiros do Douro, faz
referência aos mais significativos “pontos”.
A “galeira” mais a
montante da Régua por ele repetidamente referida é a da “Cachucha” que, situada
junto da foz do rio Távora, quando as águas iam altas, era a mais perigosa que
a navegação encontrava desde a raia até à Régua.
“Em
cada pedra há uma lenda ou o nome de um arrais que lá naufragou.” (pg.62)
A pena de Redol ligou as
pedras da “Cachucha” aos náufragos do “Rocha” e do próprio “António do Monte”,
quando o rio arrebatou, não só o barco, mas também a junta de bois que o puxava
“à sirga”.
Raríssimos teriam sido os
arrais que não deixaram o seu nome ligado a um dos recifes assassinos do rio
cruel. Mesmo quem, como o “Antoninho do Porto Manso” (pai), “confiava no seu
pulso, nos olhos e na sabedoria que tinha do rio, que até de olhos fechados
seria capaz de conduzir um barca do Pinhão à Régua”, mesmo para quem, como ele,
“não havia marca estranha, nem ponto ou carreira que a sua memória não
guardasse” (pg.14) pode deixar de ver o seu nome ligado a uma das pedras
assassinas do rio. Ao “Antoninho do Porto Manso” aconteceu o “desastre, na sua
primeira falha de arrais”, (pg.13) quando passava “o Carreiro do Cadão com o
“matriz” carregado com pipas de vinho da Ferreirinha.” (pg. 13)
O Cadão – grande queda ou
quedão de águas rápidas – ficava a jusante da Régua. A sua enorme cachoeira,
durante a estiagem, quase submergia os barcos que iam em sentido descendente,
os quais eram obrigados a passar por entre dois grandes penedos muito próximos
e submersos a que a marinhagem chamava “aguilhões”.
Mas se o Cadão era dos
mais perigosos com o rio em baixo, a Bula – a amais temível “galeira” entre a
Régua e o Porto – era perigosíssima quando as águas iam altas. Então,
formavam-se grandes correntes de águas falsas, dornas ou sorvedouros, bulhos ou
bulhões (que estão na origem do topónimo). Mas quando as águas iam baixas...
“-
Nunca fiando. Na Bula de Fora Bonita já um barco da Régua lá ficou com água
baixa.” (pg. 34)
Mas era com a água alta
que se transformava num verdadeiro açougue de barcos. Disto, mesmo nos dá conta
o Escritor, utilizando expressões características da linguagem rabela:
“O
rio ia em baixo e a Bula não estava em cabeça; se o estivesse, o barco não
passaria.” (pg. 277)
Com efeito, dizia-se no
Douro: “Indo a Bula em cabeça é impossível a passagem dos barcos.” Isto é,
quando as águas se aproximavam da “cabeça” do muro que a Companhia das Vinhas
ali mandara construir para melhorar o “ponto”, tornava-se impossível
transpô-lo. Para se fazer uma ideia da sua perigosidade, bastará dizer que, em
alguns invernos e num só dia, ali se despedaçavam seis e sete barcos dos de
maior lotação!
Redol refere-se ainda a
outros locais naufragantes, como: o “Carreiro da Gorça”, em cujas proximidades
localizou o “naufrágio” do Sebastião de Porto Antigo, o “Ponto do Feiticeiro”,
a temível “galeira” da “Escarnida”, etc.. Detém-se demorada e criteriosamente
no “Ponto Novo”, cuja cachoeira se apresentava como uma das mais
impressionantes, tanto para as companhas que desciam como para as que subiam. A
provar as dificuldades que este “ponto” apresentava, estava a existência do
guincho que ali foi fixado para ajudar a “alar” os barcos. Mas quando Redol por
ali passou, já esse aparelho se tinha partido, já não estava em condições de
ser utilizado. Mesmo com o guincho muitos rabelos ali naufragaram!
Depois do “Ponto Novo”,
onde “As borbulhas de água a espumar em redemoinhos, onde todos os outros sons
morriam (...) estrangulados pelo fragor do pontp” (pg. 48), aparecia o “Ponto
da Arretorta” (ou Retorta) “o último ponto até ao Porto que trazia perigo”.
(pg.47).
3- FAINA
FLUVIAL
Este Douro, tão eriçado de
escolhos em meados do século XX, era ainda mais escabroso antes da realização
de sucessivas obras hidráulicas levadas a cabo graças à Companhia das Vinhas do
Alto Douro.
Quando Redol por lá andou,
já estava em vias de desaparecimento os barcos que carregavam até 50 pipas, mas
nos tempos altos da navegação no Douro, existiam muitos que comportavam 70, 80
e até 90 pipas.
Chamavam a estes barcos
“matrizes”, e aos de menor calado “trafegueiros”. Eram aqueles que se
destinavam à cabotagem entre Espanha, Trás-os-Montes e Alto Douro, Beira, Douro
Litoral e o Porto. Os “trafegueiros”, mais utilizados na travessia do rio, só
poderiam transportar vinho em sentido longitudinal, desde que fosse presente um
“feitor” ou um “confidente”. (6)
Numa viagem entre o Porto
e a Barca d’Alva (e até ao Saltinho, em Freixo de Espada-à-Cinta), um “matriz”
utilizava os conhecimentos de quatro “mestres” ou pilotos, cada um deles exímio
conhecedor de um dos quatro “acejos” em que se dividia o Douro navegável:
“Águas da Régua”, para jusante desta vila; “Águas do Pinhão”, entre esta
localidade e a Régua; “Águas do Tua”, do Pinhão à foz do Tua e “Fora de
Marcas”, para montante desta foz até ao referido Saltinho.
Estes mestres revezavam-se
quando atingiam o limite de cada “acejo”. Então, desembarcavam e aguardavam que
viesse outro barco em sentido contrário, e assim sucessivamente. A esta faina
dos “mestres” chamavam no Douro: “andar ao cambo”. E deveria ser tão antiga
como a própria navegação neste “rio de mau navegar”, pois já Ruy Fernandes se lhe
referia em 1532.
Redol também nos deixou
uma amostra da faina de um dos derradeiros espécimes dos conceituados pilotos
da “era rabela” quando, na parte inicial do seu prestimoso romance, nos
apresenta imagens da última viagem descendente do barco de 50 pipas de António
Monte. Quando nos mostra o orgulho ferido, o “vergonhaço” do último dos filhos
e netos dos arrais do Monte, de precisar de “mestre” para lhe mandar nos
homens, apesar de conhecer o rio como poucos, mas que lhe tomara respeito,
depois que naufragara na “Cachucha”.
Quando a bordo, o “mestre”
era quem dava rumo ao barco e ordens à tripulação: “O mestre alçou a vista,
inclinando-se para a esquerda, ajudado pelo arrais e por dois marinheiros.
-
Muito! Muito! Vai de ré!
E
os homens gemiam com a espadela, como se receassem a vertigem da descida.
-
Não se matem da vante! Não se matem muito!” (pg. 33)
Redol começa a descrever-nos a faina fluvial quando o barco descia o
“Poço da Parede”, impelido, simultaneamente, pela força da corrente e dos
remadores. Numa altura destas, só os que iam nas “apegadas” manobrando a
“espadela”, seguiam atentos. O resto da marinhagem navegava descontraída, mesmo
os esforçados remadores, os rapazes solteiros que se agarravam aos remos com
mais vigor, porque se lembravam (das “febras”), das carícias e do vinho que os
esperaram na Ribeira e na Rua Escura.
Longe das “galeiras” e da
“sirga”, a companha tinha disposição e vagar para dichotes, para chalaças, para
conversas sempre brejeiras, para pequenas picardias e até para descantes com a
chula rabela.
Com Porto Manso à vista, o
arrais tocou a buzina que “atroou como uma busa de fábrica, levando a mensagem
do barco.” (pg. 34)
Quando os sons emitidos
através da buzina se faziam ouvir nas aldeias dos pescadores, a criançada e as mulheres
entravam em grande alvoroço, perante a expectativa de matarem as diversas fomes
que quase sempre os apoquentavam.
Se dois barcos se cruzavam
no rio, as companhas saudavam-se e inquiriam as mais diversas informações:
“-
Adeus, ò Saraivão – gritou o Carita para o outro barco.
Os
arrais saudaram-se, acenando os chapéus, e a marinhagem trocou dichotes.
-
Muitos barcos na Ribeira?
-
O poder do mundo, senhor Antoninho. E por esse rio abaixo é à formiga.
O
Violas perguntou pelas raparigas da Rua Escura, aproveitando o ensejo para
voltar à carga com os homens casados.” (pg. 35)
Para alegria dos solteiros
e tristeza dos casados, a informação recebida reforçava a decisão de não
pernoitarem em Porto
Manso.
Durante a breve paragem na aldeia, enquanto “os marinheiros” casados
afagavam os filhos e devoravam as mulheres com o olhar, enquanto o moço corria
ao seu casebre a levar um naco de broa à mãe moribunda, os “homens sem
companheira” tiravam a prova ao vinho fino que o barco transportava, para
substituir a zurrapa que se bebia a bordo.
Depois do último adeus, o
rabelo foi arrancado das margens à vara e depois os remadores levaram-no a
percorrer o “Pego da Volta”, em cujas margens ecoavam os gritos do “Maldito”,
que as fadigas e a miséria dementaram.
Pouco antes da
“Escarnida”, o “mestre” acabou a faina, recebeu a soldada e desembarcou.
Estes mestres, como os
“marinheiros”, não eram parte interessada no barco, que era propriedade do
arrais. No tempo em que
Redol navegou pelo Douro, um “mestre” recebia, em média, uma
nota de 50$00 e de comer – mais 10$00 do que ganhava um “marinheiro” em cada
viagem da Régua ao Porto e regresso.
O arrais, para além da
obrigatoriedade de ter um livro onde registava as mercadorias que transportava,
todos os anos tinha que se matricular, com o respectivo feitor e demais
companha ajustada. Para tanto, assinava um termo em que se declarava a promessa
de não tomar outros marinheiros nem outros mestres, nem outro feitor de proa
(ou arrais de proa); e estes prometiam não desertar. (7)
A tripulação de um velho
“matriz” era constituída por 15 ou 16 homens, que se empregavam em diferentes
funções: arrais, feitor de proa, feitor de espadela ou braceador, 1.º, 2.º, 3.º
e 4.º cabresteiros, vinhateiro, ponteador da pá dos dois, dos três e panteador
das pás da ré. Havia ainda o moço que cozinhava e o responsável pelo vinho e
pelos víveres na chileira era o vinhateiro ou fiel. (8)
Depois, com a decadência
da navegação fluvial e o progressivo desaparecimento dos “matrizes”, os rabelos
de 50 pipas não tinham uma tripulação superior a 9 ou 10 homens. Mas o arrais
jamais alugou o seu barco e o frete das pipas era-lhe pago à unidade.
Como acontecia com outros
grupos profissionais, a marinhagem do Douro tinha o seu calão ou gíria que,
quem não fosse da região, muito dificilmente entenderia. Assim, quando entrava
algum estranho a bordo com uma missão menos simpática, eles conversavam em
gíria entre si, começando por designar o antipático intruso por “cão”.
Para o estudioso que hoje
quisesse fazer uma recolha dessa gíria, teria muita dificuldade de ir além dos
numerosos topónimos que deixaram no rio e das infindáveis alcunhas com que se
“crismaram” dezenas de gerações.
O apodo que “crismou”
maior número de durienses foi, sem dúvida, o de “rabelo”. Esta designação teve
a sua origem na “espadela” ou “rabo” (leme) com que eram apetrechados os respectivos barcos. Com o decorrer dos
tempos, passou também a designar os barqueiros (e a sua gente) que habitavam
em Barqueiros e em terras de Baião, na margem direita e nas povoações
ribeirinhas dos concelhos de Rezende e de Cinfães. Não tomaram este apodo nem
os barqueiros da Régua nem os de Castelo de Paiva – que desde sempre foi tida
como pátria dos mais exímios barqueiros e arrais que navegavam no Douro.
Quase tudo isto nos aprece
referido no curioso romance de Alves Redol. Mas retomemos de novo o fio da
narrativa.
“Depois
de o “mestre” desembarcar, o rabelo de António do Monte passou a “Escarnida”,
limiar da “nova cavalgada de fragaredo”. A marinhagem, perante a proximidade do
suplício do “Ponto Novo”, perdeu a boa disposição que até aí a animara. As
piadas brejeiras, a chalaça e a chula, deram lugar à angústia, ao medo e à
ansiedade: “O ruído crescia sempre. Rugia como uma catarata (...) ou um animal
feroz que esperasse os barcos com ameaças. Desvairados, os remadores davam-se à
faina com loucura, sabendo que só assim venceriam aquele inferno nascido do
ventre do rio. Nada mais ganhava a sua atenção (...). O Carita não era capaz de
assobiar, nem o Violas erguia a voz para um desafio aos camaradas.” (pg.48)
“Os
rostos dos homens pareciam capazes de deflagrar em expressões de terror e
gritos de medo”, quando a “galeira” se engasgava com o barco, escancarava as
monstruosas goelas para o vomitar, depois, envolvido em espuma.”
Conforme Redol nos deixa
perceber, os rabelos navegavam à vela, a remos e à vara. A vela era utilizada
quando os ventos sopravam de feição. Mas, como o Douro é muito sinuoso, eles
sopram, muitas vezes, caprichosamente e então, era necessário arrear as velas e
recorrer às varas e/ou aos remos. Porém, nas “galeiras” onde a corrente era
mais impetuosa, os barcos que seguiam em sentido ascendente eram levados à
“sirga”. Quando o barco se mostrava impotente para vencer a força da corrente,
a companha entrava em pânico e o arrais ou o “mestre” “cambavam” o rabelo para
a margem. Encostado à borda, alguns marinheiros saltavam em terra e daqui
atiravam a corda que amarrava o barco.
Se a carga dificultava o
serviço de “sirgar”, a campanha “transfegava-a”, isto é, carregava-a às costas
para fora de bordo. Depois, passava a “sirga” e as espias pelo “ginga-mochos” e
lançava-as, também, para a margem. A bordo apenas ficavam o arrais, (o mestre)
e o moço, o resto da companha, com a corda ao ombro ou com o peito enleado nela,
ia penosamente puxando a “sirga”, suando e fincando os pés (e às vezes, as mãos
também), arranhando-se nas arestas das rochas até sangrar e rouquejando em
gritos cadenciados:
-
Upa! Upa! Arriba barco! À tona! À tona!
-
Ah, rapazes!
-
Que leite a minha mãe me deu, carago!
-
Puxa! Certo! Oh, puxa! Puxa!
“E
rangiam como a espadela, falavam com ódio, vermelhos, olhos injectados de
sangue.” (pág. 153).
Ao vê-los assim derreados
num trabalho próprio para bois, muitos dos que mourejavam nas encostas, em
obediência a um abominável costume, vaiavam-nos com desdém, de escravo para
escravo:
-
Eh, boi d’areia!
-
Eh, pata rachada!
-
Deixaste o teu pai no lameiro!...
-
Oh, rabelo, coça a sarna!
Noutras situações os
barqueiros responderiam “à letra”, mas assim, mortificados com o trabalho e com
o perigo, recebiam os apupos amarguradamente, remoendo a afronta numa íntima
revolta e murmurando muitas vezes:
“Bem
fala quem está na areia;
Desgraçado
de quem vai na veia.” (pág. 341)
Este serviço, além de
violento, era perigosíssimo: ás vezes, a corda rebentava no meio do “ponto” e o
barco, impelido para trás pela impetuosa corrente, quase sempre se despedaçava
contra os recifes.
Quando as margens o
consentiam, o penoso trabalho de “alar o barco à sirga” era feito por juntas de
bois “paivotos” (de Paiva), a troco de 3$50 ou 4$00 (isto no tempo em que Redol andou por lá).
A impetuosidade das
correntes de alguns “pontos” era tal, que os cabos retesados, batendo e roçando
sempre nas mesma pedras, acabavam por fazerem sulcos com a largura do diâmetro
dos cabos e com profundidades de muitos centímetros.
Para vencerem as forças
destas correntes os bois retesavam os músculos até fazerem o rabelo galgar o
“ponto” e ganhar o poço que ficava acima.
-
Eh, boieiro!
-
Galante, vá! Bonito, óó!...
Às vezes a violência das
torrentes era tão grande que a força dos pobres bois não chegava para a vencer
e iam de rojo, pelo chão, e se uma mão salvadora não aparecia a cortar a corda
em terra, ou a soltá-la do barco, os animais mergulhavam no abismo e assim se
perderiam com o rabelo, como “aconteceu” quando do “desastre” de António do
Monte” na “galeira da Cachucha”.
Como foi dito, a luta
contra os furores deste rio assumia variadas “nuances”, sendo também de
destacar as situações em que os rabelos navegavam vertiginosamente ao encontro
de terríficas cachoeiras. Quando os barcos desciam assim, às vezes, para melhor
vencerem os “embalos”, os arrais ou os “mestres” mandavam “botar bordugos” –
tábuas complementares estendidas ao longo dos bordos – e os barcos seguiam,
mesmo assim, com apenas 30 ou 40 centímetros acima da água, pelo que,
facilmente se alagavam e submergiam nessas medonhas cachoeiras.
Quando os rabelos se
precipitavam desvairadamente ao encontro do abismo, o único freio era a
espadela. Com efeito, toda a segurança residia nas mãos que agarravam os tornos
do leme e nos ouvidos que seguiam com a maior atenção a voz de quem comandava o
barco: o mais pequeno descuido, a menor descoordenação de esforços, poderiam
provocar um naufrágio! Nestas situações, quem manobra o leme tinha que possuir
grande capacidade de determinação e arrojo, tinha também que dispor de grande
força física para poder vencer as águas revoltas que sacudiam e faziam rodopiar
o barco. Se em tais circunstâncias não se conseguia dominar a espadela, o
naufrágio era certo, a tragédia iminente.
Vejamos o que nos conta
Redol:
“Num
momento a espadela venceu-os e ambos caíram nas apegadas. Depois foi um gemido
maior e um estalo seco, como se um raio tivesse fendido o barco. António do
Monte ainda se quis erguer, mas a espadela arrancada foi perder-se no
torvelinho das águas.
Na
proa os remos pararam. (...) Os homens gritavam, esbracejando, agarrados uns
aos outros, com os olhos tocados pelo assombro da morte. O barco rodopiou, uma
vaga cresceu e varou a proa. Logo outra e outra. De bocas abertas, já sem
gritos, os homens suplicavam de mãos erguidas, corriam de um lado para o outro
e atropelavam-se, caiam e gemiam. E logo se levantavam, como se quisessem tapar
o barco com o corpo para que as vagas o não inundassem.
-
Barco perdido! Barco perdido!
-
Senhora da Cardia!
-
Senhora da Boa Viagem!
O
rabelo ia descaindo, já inundado, e num repente estacou. Os marinheiros
atiraram-se à Água, agarrados aos remos, e gritavam uns pelos outros, tentando
alcançar as margens.
-
Vá, arrais! Atire-se aqui, arrais!
-
Vá, rapaz!
O
moço amarinhou pelas pipas, mas, naquele instante, o empilhado da carga
desfez-se e arrastou-o. Um grito avantajou-se (...) As pipas rolaram num
furacão que se despedaçou à proa; ele ali ficou de braços abertos, esmagado,
com uma expressão de espanto no olhar e um fio de sangue a borbotar-lhe do
canto da boca.
O
barco afundou-se. E a água veio raivosamente levar o fio de sangue.
Teria
o seu nome lembrado no ponto da Bula, junto de todos os outros que ali haviam
naufragado.” (pgs 287 e 288)
No tempo em que Redol viajou no
proceloso rio, já há muito a navegação rabela agonizava. Mas durante dois
séculos de desenvolvimento da agricultura capitalista duriense, até ao advento
do caminho-de-ferro, para além do quase completo exclusivismo no transporte de
produtos e mercadorias, ela desfrutou dum importante papel no tráfego de
passageiros, quer nos que se movimentavam no Douro e regiões circunvizinhas
quer, e nomeadamente, aqueles que se deslocavam aos grandes centros urbanos
como Porto, Coimbra e Lisboa. E nas últimas três ou quatro décadas desta
actividade, em apenas dois grandes naufrágios, pereceram mais de sessenta
pessoas.
Segundo reza a tradição
duriense, nunca um rabelo navegou entre o Porto e Barca d’Alva que não
encontrasse diversos barcos naufragados!
Assim se compreende que,
apesar da importância que o tráfego fluvial representou no desenvolvimento da
sua economia, nunca o capitalismo tivesse chamado a si tão arriscada
exploração.
Com a introdução e o
desenvolvimento do capitalismo na agricultura do Alto Douro, foram tomando
vulto alguns estaleiros que, em regra, se desenvolveram em locais que, antes,
eram apenas simples “portelos” ou “surgidoiros” onde, quase sempre, existia uma
secular tradição fluvial. Carvalho, Moledo, Porto Rei, Porto Antigo, etc.,
sempre foram povoações em que, para além da faina da pesca, sempre se
desenvolveram os transportes fluviais, quer as antiquíssimas travessias das
velhas barcas de passagem, quer o transporte, em sentido longitudinal, de
simples viandantes, de mercadorias, de almocreves, de produtos e mercadorias.
Os mais importantes desses
estaleiros desenvolveram-se em localidades como Barqueiros, Porto Antigo,
Vimieiro, Castelo de Paiva, etc., porque, além de terras de barqueiros, ali
tinham melhores acessos não só os fornecimentos de madeiras (pinho, castanho e
carvalho), mas também os carpinteiros e os calafeteiros que ajudavam os
“marinheiros” a construir os barcos para os respectivos arrais.
Todas estas circunstâncias e o facto de nas diversas localidades
ribeirinhas existir mão de obra disponível, fizeram desta zona do Douro
Inferior, situada imediatamente a jusante do Douro Vinhateiro, o centro de
recrutamento dos “marinheiros” e dos arrais que o capitalismo necessitava para
o temeroso transporte das suas mercadorias, nomeadamente do afamado “Port
Wine”. E à medida que foi crescendo a exploração da “bottled sunlight” cresceu
também um novo ramo da burguesia nortenha que se desenvolveu, quase sempre, servindo
os interesses da burguesia britânica que, a partir da segunda metade do século
XVII, se tinha fixado em Portugal e no Brasil para enriquecer depressa.
Alguns dos proprietários
de “matrizes” viriam a conseguir não só a construção de uma parte das boas
casas que existiam em diversas localidades do Douro Inferior, mas também viriam
a fazer ordenar sacerdotes alguns dos seus filhos, enquanto a outros os
transferiam para a nova burguesia urbana, a desempenharem trabalhos
intelectuais não produtivos, como: juristas, docentes, médicos, etc.. De entre
os arrais que enriqueceram, ficou na lembrança de todos o legendário José
Inácio de Carvalho, que, além de possuidor duma das mais importantes frotas
rabelas, foi ainda importante proprietário em Fontelas (Nespereira, Cinfães).
Mas a grande maioria das
gerações de arrais, mesmo as mais notáveis como foram as dos Corteses, de
Barqueiros e a dos Lodos, de Porto Manso, jamais se distinguiram pelo vulto dos
capitais que deixaram, mas pela fama de valentões, pelo prestígio de grandes
conhecedores dos segredos do “rio de mau navegar”, pelo orgulho dos arrais que
nunca naufragaram. E para perpetuarem estes prestígios e orgulho, cada geração
escolhia em regra, o filho “mais esperto” para herdar tudo isto através do barco
– seu pendão de glória – e algumas leiras. Os últimos sucessores desta
profissão tradicional, herdaram também um negócio ruinoso. Se o avô ou o bisavô
de um qualquer António do Monte ganhava, “num ano afortunado”, 600 ou 650 mil
reis (tanto quanto poderia custar, então, um rabelo devidamente apetrechado), o
neto ou o bisneto viveram uma situação insustentável, porque perdiam dinheiro
em cada viagem, porque não tinham possibilidades de sustentar um “matriz”. Mas
nem mesmo assim se lhe poderá retirar “a dignidade” de burguês. Enquanto
António do Monte manteve a propriedade do barco, o controlo do processo de
trabalho (posse), a propriedade jurídica do rabelo, manteve essa “dignidade”,
com a categoria de patrão activo, no sector de transportes.
O arrais do barco rabelo,
tal como o pequeno proprietário de Riba-Corgo, sempre viveu abrasado com a sede
de posse de algo que, acima de tudo, lhe conferia um “prestígio” que o
dignificava aos olhos dos seus conterrâneos, que os elevava socialmente acima
deles. E a este orgulho tudo sacrificaram: haveres, tranquilidade e, às vezes,
a própria vida. Assim viveram gerações sem conta, sulcando, através de mil
escolhos, a rota da quimera.
NOTAS
(1) Vidé Tomé Pinheiro de Veiga, FASTIGIGIA, pág. 354.
(2) Entrevista concedida a Francisco Tavares Teles, para
a revista do Clube Transmontano de Angola, em 1948, vidé Charrua em Campo de
Pedras, pág. 51.
(3) Entrevista concedida a Juliano Ribeiro, para o jornal
“A Tarde”, de 21 de Fevereiro de 1945. Vidé Charrua em Campo de Pedras, pág.
50.
(4) Vidé Descripção dos Arredores de Lamego – V volume da
Academia Real das Sciências de Lisboa (indicado na bibliografia) pág. 565.
(5) Vidé Imagens e Legendas do Minho e Douro, pág. 42.
(6) Vidé “O Barco Rabelo”, pág. 48.
(7) Idem, pág.84.
(8) Idem, pág. 83.
BIBLIOGRAFIA (Principais
livros consultados)
Redol, Alves, Porto Manso, 2.ª edição, Lisboa, Inquérito,
s/d.
Teles, Francisco Tavares, “Alves Redol no Douro”, in
MENDES, José Manuel, Charrua em Campo de Pedras, Lisboa, Seara Nova, 1975.
Pinheiro Torres, Alexandre, Os Romances de Alves Redol, 1.ª edição,
Lisboa, Moraes Editora, 1979.
Salema, Álvaro, Alves Redol a Obra e o Homem, 1.ª edição,
Lisboa, editora, Arcádia, 1980.
(V volume) Academia real
das Sciências de Lisboa, Colecção de Inéditos da História Portuguesa, 2.ª edição,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1936.
Dias, Augusto, Lamego no Séc. XVI, 1.ª edição, Régua,
Edições “Beira-Douro” 1947.
Silva, Joaquim Oliveira da, Imagens e Legendas do Minho e
Douro, Edição do Autor, Porto, 1942.
Mattos, Armando de, O Barco Rabelo, edição da Junta de
província do Douro Litoral, Porto, 1940.
Zeca do Porto