REDOL EM PORTO MANSO

(Prémio Alves Redol para estudantes universitários, 1982 - ganho por José Gomes Quadrado)

INTRODUÇÃO

A história de um país será tanto mais conseguida, quanto maior e melhor for o conjunto de monografias das suas várias regiões ou sub-regiões, incluindo as diversas actividades económico-sociais que aí se desenvolveram no decorrer dos tempos. A falta desta informação é uma característica de algumas das zonas mais recônditas do nosso país, constituindo um tremendo obstáculo não só ao desenvolvi- mento da nossa historiografia mas também à evolução das ciências sociais entre nós.

De acordo com autorizadas opiniões, é muito gravosa a falta de elementos informativos sobre a história da nossa agricultura em geral, incluindo a da região duriense, apesar de, como é sabido, ali ter sido constituída a primeira região demarcada do Mundo. Teria forçosamente que ser precária uma informação que assenta, essencialmente, nos interesses da classe dominante. Com efeito, quer a documentação elaborada em torno da polémica institucionalização da Companhia das Vinhas do Alto Douro, quer as pouco criteriosas monografias do Douro que se escreveram depois dos estudos realizados pelo Barão de Forester e pelo Visconde de Vila Mayor, padecem desta moléstia. Os primeiros, são denominados por dois tipos de teses que interessam a dois grupos da mesma classe: a que defende os privilégios da Companhia, é dirigida, quase sempre, por quem era favorecido pela venalidade dos provadores e classificadores dos vinhos; a tese, que atacava as “majestáticas prerrogativas”, era defendida por quem estava interessado no livre comércio, na especulação, no monopólio inglês (de facto) da comercialização e exportação do vinho fino.

Quanto às monografias, avulta nestas a lisonja dirigida aos grandes proprietários e a informação útil que dali se retira, resulta, quase sempre, da inventariação dos meios de produção que, em regra, são detidos pelas sucessivas gerações dos pioneiros do Capitalismo em Portugal.

Em face do vazio deixado por tais documentos e estudos, resta-nos procurar encontrar notícias dessa realidade socio-económica na Literatura. Mas também aqui o panorama é pouco animador, como se procura demonstrar no primeiro ponto deste trabalho.

As informações e imagens mais fidedignas sobre o Douro, começam a aparecer no primeiro lustro dos anos quarenta. Em 1943, é publicado o primeiro volume do “Inquérito à Habitação Rural”, valioso estudo que se debruça sobra a habitação rural do Minho, Douro Litoral, Trás-os-Montes e Alto Douro. Tendo sido promovido pelo Senado da Universidade Técnica de Lisboa, foi dirigido pelos professores Lima Basto e Henrique de Barros.

Em Setembro de 1943, chega Redol pela primeira vez ao Douro, em 1946, publica “Porto Manso”, em 1949, “Horizonte Cerrado” e quatro anos mais tarde, “Os Homens e as Sombras” e “Vindima de Sangue”.

Nestes quatro livros de Redol encontrei, finalmente, retratada a realidade social da região duriense. Seria isso mesmo que eu tentaria provar aqui, se o escasso tempo de que dispõe o trabalhador estudante o permitisse. Mas como não é possível, vou limitar-me a fazer uma breve e despretensiosa “leitura” de algumas páginas do romance “Porto Manso”, um dos livros mais realistas da obra de Redol. Esta “leitura”, que aparece no limiar (pouco auspicioso) duma nova era da navegação no Douro, não é feita pelo universitário serôdio que agora sou, mas pelo peregrino dos caminhos sinuosos do Douro que sempre fui.


1 - DE TORMES A PORTO MANSO

A grande falta de informação que existe sobre a região duriense deriva, em grande parte, da sua recôndita situação geográfica. O facto de ela se localizar a grande distância dos grandes centros de informação, a sua milenária carência de vias de comunicação e de outras infra-estruturas, constituíram, desde sempre, importantes obstáculos ao seu integral conhecimento, à sua conveniente divulgação e progresso. E se este problema ainda hoje existe, muito pior se apresentava antes do comboio ali fazer a sua aparição, na penúltima década do século passado.

Embora já alguns escritores quinhentistas – como João de Barros, André Resende e o próprio Camões – se tenham sentido na obrigação de referir o segundo maior rio que desagua em Portugal, suponho que antes do comboio ali chegar, o único escritor de nomeada que ali se deslocou foi Herculano, quando empreendeu a sua penosa e arrojada visita de estudos a Moreira de Rei. Uma vez ali, resolveu cavalgar mais alguns quilómetros para, do topo de um desfiladeiro espreitar o serpenteado rio. E tão impressionado ficou com a paisagem dantesca, que sentiu dores de cabeça. Mais tarde, já no aconchego de Vale-de-Lobos, com mais ânimo, escreveu: “A natureza, nas paisagens do Douro, empregou um pincel semelhante ao de Miguel Ângelo- foi robusta, solene e profunda”.

Tendo nascido em Freixo de Espada-à-Cinta, Junqueiro avistou-se milhares de vezes antes e depois da construção do caminho de ferro. Depois, na sua qualidade de proprietário da Quinta da Batoca (na Barca d’Alva) e de residente no Porto, atravessou a região duriense dezenas e dezenas de vezes. Mesmo assim, para além de “O Cavador” (que tanto pode ser um “pobre” duriense como doutra região qualquer), nunca foi além de coloridos “bilhetes-postais” como este: “Paisagem dura, escalvada e austera, uma paisagem bíblica em que o deus que ali fica bem é Jehová”.

Ramalho Ortigão viajou de comboio até à Régua e, depois de descrever um belo panorama que dali avistou, foi mais longe: cravou uma “farpa” curta no dorso da “Factory”.

Mais ninguém pintou o Douro com cores tão bizarras como o nosso celebrado Eça de Queiroz, nunca ninguém vislumbrou o que ele ali descobriu. Com efeito, a umas escassas três léguas a montante de Porto Manso, no eremitério de Tormes, descobriu ele o paraíso terreal digno do seu riquíssimo “hipercivilizado” e neurasténico Jacintinho.

Muito pode o “manto diáfano da fantasia!”

Duma hora para a outra, a simples encosta dum pequeno monte foi transformada na “serra bendita entre as serras” na “serra da fartura e da paz!”!

Este local paradisíaco não ficava a três léguas, mas a milhares de quilómetros do calvário onde penavam vidas sem pão, vidas que se confrontavam com combates milenários, sem alívio nem esperança. Ali, na terra da fartura e da paz, não haverá lugar para rendeiros espoliados, para dementes de fadigas, para mendigos. Com o Jacintinho só podiam coexistir, ali, amigos polidos e cultos como o Zé Fernandes e fiéis servidores que obedecem sempre de chapéu na mão.

Como se vê, alguns dos nossos mais notáveis escritores do fim do século passado e do princípio deste, continuaram a produzir uma literatura profundamente afectada pela romântica dicotomia cidade-campo, uma literatura que apenas teve “olhos” para fixar o pitoresco, o belo-horrível, o folclorismo. Nela não vislumbramos a realidade social que, até certo ponto, podemos encontrar condensada naquela notícia do barbeiro espanhol, inserta na Fastigimia e que diz:
“Allá en portugal, com sus viñas,
ellos biven muriendo de hambre,
rotos y desgarrados,
ansi bivieron sus padres
y han de morir sus hijos.“ (1)

Com efeito, as sucessivas gerações que se arrastaram, curtindo fomes, fadigas e desesperos sem conta, vítimas das constantes crises que resultam da procura do lucro fácil, penaram naquele calvário pelo menos durante dois séculos, sem que em letra de forma aparecesse uma denúncia a acusar e envergonhar os centros do Poder. Foi o próprio Poder, na pessoa do rei D. Carlos que, sem querer, desencadeou a primeira campanha de denúncias. Efectivamente, este monarca, já nos derradeiros meses do seu reinado, teve a ideia de ir estanciar, durante alguns dias em Pedras Salgadas. Quando menos o esperava, viria a ser surpreendido por uma enorme multidão de durienses que, numa grandiosa manifestação de silêncio, lhe acenou com bandeiras negras, símbolo da tremenda fome que então (como noutras ocasiões) grassava no Douro.

O Terreiro do Paço, alvoraçado com esta singular manifestação, acorreu, pressuroso, com os famigerados paliativos franquistas que, como era de esperar, não resolveram os problemas dos trabalhadores durienses.

Todavia, o “escândalo” tivera o condão de despertar os centros de informação. Assim, em meados de Janeiro de 1909, o jornal “O Século” enviou para a Região Demarcada o jornalista Adelino Mendes que, com as suas reportagens arrepiantes, realizadas entre 18 de Janeiro e 2 de Março, deixaria o País estarrecido. Nunca a informação dera notícia de miséria tão grande! E no entanto, já muitas outras crises se contavam no historial duriense, algumas delas ainda mais graves.

Pouco depois desta denúncia, veio a Revolução de 1910, o período de exaltação republicana e tudo voltou a ser o que dantes era. O Douro caiu mais uma vez na sua secular letargia, continuou a desfiar o seu interminável rosário de crises, de ruínas e de amarguras, sem que uma voz ou um dedo se erguesse para apontar as culpas de tantas colheitas de suores, de lágrimas e de fome.

Em 1943, aparece quem se mostraria determinado a mostrar as profundas feridas sociais existentes no Douro. Com efeito, é neste ano que é publicado o “Inquérito à Habitação Rural”, dirigido pelos professores Lima Basto e Henrique de Barros, que apesar das suas reconhecidas insuficiências, nos deixou aterradoras imagens em que viviam milhares de pessoas, imagens de vidas sem pão, sem conforto, sem alívio nem esperança. Apesar destes estudos terem sido promovidos pelo Senado Universitário da U.T.L., o braço negro da censura fascista só daria tempo a que se publicasse mais um volume dos inquéritos.

Do mesmo modo se goraram os projectos que, em Setembro de 1943, levaram Alves Redol pela primeira vez ao Douro. Abortaram os projectos de levar por diante a história de “O Trabalho em Portugal”, mas a viagem de Redol ao Douro não foi em vão. Efectivamente, desde que viu o Douro sentiu-se atraído “não só pela sua paisagem variegada, como pela riqueza dos tipos humanos. Conhecê-la do rio, em viagens feitas nos rabelos, vivendo com os seus marinheiros nos perigos dos “pontos” ou nas trágicas subidas feitas à sirga e à vara, é experimentar uma das mais vivas emoções que conto na minha vida emotiva.”(2)

- Donde lhe veio a ideia de escrever este romance?
-  “Da minha primeira visita ao Douro, em Setembro de 1943. Pensava então, talvez infantilmente, que depois do que vira sobre as dolorosas condições de trabalho em Portugal, em certas e mal conhecidas actividades nada veria de pior. Do que vira no Douro ficara-me a ideia de escrever um romance. Tinha tudo – ambiente, personagens, causa, acção. Fiel ao meu método – vim instalar-me na região em que vivem, sofrem e lutam as minhas personagens. Demorei algumas semanas em Porto Manso, ninho de barqueiros.” (3)

Quem viaja no comboio da Linha do Douro, umas centenas de metros antes do apeadeiro de Mosteirô, passa sobranceiramente a este “ninho de barqueiros”, que se espraia num recôncavo verde que, com Porto Antigo mesmo defronte, na outra margem, ladeia um maravilhoso meandro dos muitos que caracterizam o sinuoso rio. Vista do meio da encosta do monte Baião, a povoação de Porto Manso parece “um presépio bonito”.
“Vêm as casas pela vertente abaixo e espalham-se em ripanço, cautelosas umas, afoitas outras, por ruelas e largos, param à distância do rio e dali meditam, fincando os pés na areia doirada de uma praia, e envolvidas de sinfonias de árvores e frutos.” (pg. 28)

Umas centenas de metros mais a jusante, “aconchegada na costura de dois montes, a Pala brilhava ao sol, rodeada de laranjeiras, casa brancas num punhado, tendo aos pés até ao rio, uma tapeçaria verde, que as águas do Ovil não deixavam esmorecer.” (pg. 42)

Foi neste cenário surpreendente que Redol encontrou o ancoradoiro e as tocas das suas personagens. Pena foi que lá não tivesse ido também o talentoso mas discreto cineasta Manuel de Oliveira, pois em vez da curta-metragem “Douro, Faina Fluvial”, teria deixado para a posteridade uma maravilhosa e histórica longa-metragem. Começaria logo por fixar imagens que trinta anos mais tarde já seriam históricas. Com efeito, a maioria dos hortejos, dos laranjais e outros pomares que envolviam Porto Manso, bem como as que rodeavam a Pala e o punhado de casas brancas que constituíam o coração desta última aldeia, tudo isto viria a ficar submerso pelas águas da albufeira da central hidroeléctrica do Carrapatelo, construída escassos quilómetros a jusante. Se você, Manuel de Oliveira, tivesse feito outro tanto como fez Redol, munido dos seus instrumentos de trabalho, teria filmado um rio que se transformou e teria deixado imagens históricas da “era rabela” que findou, não com o comboio, mas com o aproveitamento hidroeléctrico do Douro Nacional.

2 – DOURO